quarta-feira, 29 de outubro de 2025

A Revolução Silenciosa: Como a Clareza Jurídica Transforma a Justiça

Por Nicholas M. Merlone

Resumo do artigo

A redação jurídica enxuta e eficiente é imperativo constitucional que materializa o acesso à justiça e a duração razoável do processo. Petições claras, objetivas e concisas — evitando juridiquês e prolixidade — respeitam o tempo institucional, facilitam a compreensão judicial e aceleram a prestação jurisdicional.

Introdução: O Paradoxo da Comunicação no Século XXI

Vivemos uma contradição histórica. Enquanto a tecnologia encurta distâncias e acelera a troca de informações, o Judiciário brasileiro enfrenta uma crise de comunicação interna. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em sua Resolução n. 395/2021, reconhece, como consequência, a necessidade de modernização da linguagem forense ao estabelecer diretrizes para simplificação de atos processuais. 

O Judiciário recebeu 35,3 milhões de novos casos em 2023. Parte significativa dessa morosidade decorre não apenas da organização judiciária e do volume processual, mas da ineficiência comunicativa das peças judiciais.

Já dizia a máxima: "A pior das ignorâncias é não saber escrever". No contexto forense contemporâneo, essa afirmação ganha contornos ainda mais dramáticos. Não se trata apenas de saber escrever, mas de compreender que a redação jurídica é instrumento de acesso à justiça, materialização do devido processo legal (art. 5º, LIV, da Constituição Federal) e expressão da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CF/88).


A Filosofia da Simplicidade: Menos é Mais no Direito Processual

A hermenêutica jurídica contemporânea demonstra que o texto não existe isoladamente, mas na relação dialógica com seu intérprete. Quando elaboramos petições prolixas, repletas de citações desnecessárias e argumentos repetitivos, não estamos apenas desperdiçando tempo do magistrado – estamos violando princípios constitucionais processuais.

O princípio da eficiência processual, implícito no art. 37 da Constituição Federal e explicitado no art. 8º do Código de Processo Civil de 2015, determina que todos os sujeitos processuais devem cooperar para obtenção de decisão de mérito justa e efetiva em prazo razoável. Uma petição de 50 páginas que poderia ser escrita em 10 não é demonstração de erudição – é obstáculo à justiça.

Os Pilares da Redação Jurídica Eficaz

Clareza: O texto jurídico deve ser compreensível para todos os destinatários. Quando redigimos uma contestação, não estamos escrevendo apenas para o juiz, mas para a parte adversa, para eventual tribunal recursal e, em última análise, para o jurisdicionado. A clareza não é simplismo; é respeito à dignidade humana processual.

Objetividade: Cada parágrafo deve ter função específica. Observe este exemplo inadequado:

"Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da MM. Vara Cível da Comarca de São Paulo, Capital do Estado de São Paulo, Brasil, perante Vossa Excelência, com o mais profundo respeito e acatamento que é devido à investidura de que é portador..."

Compare com a versão adequada:

"Excelência, JOÃO DA SILVA, já qualificado nos autos, vem respeitosamente apresentar CONTESTAÇÃO pelos seguintes fundamentos..."

A primeira versão consome três linhas sem transmitir informação relevante. A segunda identifica a parte e o objetivo da petição imediatamente.

Concisão: A concisão é um atributo essencial para uma petição, dirigida ao Judiciário. Não se deve ser prolixo, escrevendo dezenas de páginas. Um texto enxuto, bem redigido, com clareza e objetividade, atende sua finalidade maior, qual seja dialogar com o intérprete, no caso, o magistrado, de forma mais eficaz e efetiva.

Lógica Jurídica Aplicada

A construção argumentativa em petições deve seguir a estrutura silogística clássica, adaptada ao raciocínio jurídico:

  • Premissa maior (norma jurídica): Identificação clara do fundamento legal
  • Premissa menor (fato jurídico): Demonstração dos fatos que se amoldam à norma
  • Conclusão (pedido): Consequência lógica das premissas anteriores

Exemplo prático em ação de cobrança:

Premissa maior: "O art. 389 do Código Civil estabelece que não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos."

Premissa menor: "O réu, conforme documentos anexos (docs. 03-04), deixou de pagar as parcelas contratuais vencidas em março, abril e maio de 2025, totalizando R$ 15.000,00."

Conclusão: "Requer-se a condenação do réu ao pagamento do principal de R$ 15.000,00, acrescido de juros moratórios de 1% ao mês e correção monetária pelo IPCA desde os respectivos vencimentos."

Observe a economia processual: em três parágrafos, apresentamos norma, fato e pedido de forma encadeada e lógica. Não há necessidade de transcrever doutrina sobre mora, nem de citar dez acórdãos que repetem o óbvio.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Comunicação Forense

A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil através do Decreto n. 678/1992, estabelece em seu art. 8º o direito à prestação jurisdicional em prazo razoável.

Nesse contexto, a redação jurídica deficiente não é mera questão estilística – é problema de direitos fundamentais. Quando apresentamos peça processual prolixa, confusa ou redundante, contribuímos para a lentidão sistêmica que a própria comunidade internacional condena.

Casos Concretos: A Diferença entre Verborragia e Eficiência

Caso 1 - Embargos à Execução ineficientes:

Um advogado apresentou embargos com 45 páginas, incluindo histórico completo da execução fiscal, transcrição integral de artigos do CTN, citação de 30 acórdãos e explanação doutrinária sobre prescrição tributária. O argumento central (prescrição intercorrente) aparecia apenas na página 38.

Resultado: O juiz indeferiu liminarmente por não identificar o fundamento específico nos primeiros parágrafos, aplicando o art. 321 do CPC (petição inepta por falta de clareza). O tribunal manteve a sentença.

Caso 2 - Embargos eficientes:

Outro advogado, no mesmo tipo de demanda, apresentou peça de 8 páginas com estrutura clara:

  1. Endereçamento correto, Qualificação e síntese do pedido (1 página)
  2. Demonstração cronológica da prescrição intercorrente com base no art. 40, §4º da Lei 6.830/80 (3 páginas)
  3. Jurisprudência paradigma do STJ (1 página)
  4. Pedidos e requerimentos (1 página)
  5. Documentos comprobatórios anexos (2 páginas)

Resultado: Liminar deferida em 48 horas, mérito julgado procedente em 30 dias.

A diferença não está na qualificação técnica dos advogados, mas na compreensão de que o destinatário (magistrado) precisa identificar rapidamente a tese jurídica defendida.

A Tríade da Persuasão Forense

Há três pilares da persuasão jurídica que absolutamente se destacam:

Credibilidade: Construída através de linguagem técnica adequada, referências precisas e formatação profissional. Uma petição com erros gramaticais, citações incorretas ou formatação desleixada compromete a credibilidade do argumento antes mesmo que o mérito seja analisado.

Conexão emocional: Especialmente relevante em áreas como Direito de Família, do Consumidor e Trabalhista. Não significa apelo piegas, mas contextualização humanizada dos fatos. Compare:

Versão inadequada: "A autora sofre muito com a situação e está muito triste."

Versão adequada: "A separação dos genitores, ocorrida quando a criança tinha apenas 3 anos, seguida pela ausência paterna nos últimos 5 anos, configura abandono afetivo com repercussões psicológicas documentadas no laudo de fls. 45-52."

Lógica argumentativa: A estrutura racional já abordada no silogismo jurídico. Argumentos devem encadear-se naturalmente, do geral para o específico, do abstrato para o concreto.

Direito Constitucional Processual: Fundamentos da Síntese Jurídica

O princípio constitucional da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, CF/88), incluído pela Emenda Constitucional n. 45/2004, não é mera recomendação programática. Nesse sentido, todos os sujeitos processuais, inclusive advogados, têm dever de colaboração para efetividade processual.

Igualmente, a doutrina processual contemporânea estabelece ser dever das partes e dos advogados enquadrar o exercício do direito de defesa à lógica do processo, interpretando esse preceito como subsídio para rejeição de peças manifestamente protelatórias ou desnecessariamente extensas.

Técnicas Práticas de Redução Textual sem Perda de Conteúdo

Técnica 1 - Eliminação de redundâncias jurídicas:

"Conforme preceitua, estabelece e determina o art. 927 do Código Civil..."

"O art. 927 do Código Civil estabelece..."

Técnica 2 - Síntese de jurisprudência:

❌ Transcrever 5 páginas de acórdãos com conteúdo similar

"O STJ consolidou entendimento no sentido de que... (REsp...)"

Técnica 3 - Objetividade na fundamentação:

"Primeiramente, cumpre ressaltar, antes de tudo, que é importante destacar que..."

✅ Iniciar diretamente o argumento substantivo

Técnica 4 - Uso estratégico de anexos:

Documentos extensos (contratos, laudos, pareceres) devem ser anexados, não transcritos. No corpo da petição, apresenta-se síntese com remissão: "Conforme cláusula 5.2 do contrato anexo (doc. 03, fl. 15)..."

SEO Jurídico: Facilitando a Pesquisa Processual

Embora subestime essa dimensão, a estrutura da petição deve facilitar sua localização em sistemas de busca processuais. O uso de palavras-chave específicas nos primeiros parágrafos auxilia não apenas o magistrado de primeiro grau, mas eventuais pesquisadores, estagiários e julgadores recursais.

A Dimensão Ética: O Dever de Lealdade Processual

O art. 80, II, do CPC/2015 proíbe expressamente a conduta de "alterar a verdade dos fatos". Uma petição extensa, que esconde o argumento fraco em meio a páginas de considerações irrelevantes, pode configurar litigância de má-fé. 

Exemplo: é possível a condenação por litigância de má-fé em caso onde a parte apresente contestação de 180 páginas com argumentos notoriamente protelatórios.

Além disso, nos termos do art. 2º, inciso VIII do Código de Ética e Disciplina da OAB, é dever do advogado "atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé". A redação prolixa que visa apenas protelar ou confundir viola simultaneamente os deveres de lealdade (processual) e boa-fé (objetiva).

Conclusão: A Redação Jurídica como Instrumento de Transformação Social

Retomando os argumentos apresentados, evidencia-se que a redação jurídica eficiente não é luxo acadêmico ou preciosismo estilístico. Trata-se de imperativo constitucional (duração razoável do processo), exigência legal (CPC, art. 77, V), comando ético (OAB) e compromisso com os direitos humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

A síntese dos argumentos principais:

  • A clareza textual materializa o acesso à justiça e o devido processo legal
  • A objetividade respeita o tempo institucional e a dignidade dos operadores jurídicos
  • A concisão acelera a prestação jurisdicional e reduz custos processuais
  • A estrutura lógica facilita a compreensão e fortalece a persuasão
  • O cumprimento dos limites éticos previne litigância de má-fé

Convite ao debate acadêmico: Propomos a criação de grupos de estudo multidisciplinares reunindo magistrados, advogados, professores e linguistas para desenvolvimento de manual prático de redação forense, com exemplos reais (anonimizados) de boas e más práticas. As Escolas da Magistratura, seccionais da OAB e faculdades de Direito podem protagonizar esse movimento.

Proposta de intervenção social inovadora: Sugerimos ao CNJ a instituição do "Selo Petição Clara", certificação digital atribuída automaticamente a petições que respeitarem parâmetros objetivos (limite de páginas por tipo de ação, uso de linguagem simples, estrutura lógica verificável por IA). Processos com peças certificadas poderiam ter prioridade na pauta de julgamento, incentivando boas práticas de forma concreta.

O desafio está posto: transformar a redação jurídica de obstáculo burocrático em ponte de acesso à justiça. Como diriam... não basta saber escrever – é preciso saber escrever bem, e escrever bem no Direito significa escrever para ser compreendido, não para impressionar. A revolução silenciosa da clareza jurídica começa em cada petição que redigimos.


"Os homens de poucas palavras são os melhores." William Shakespeare
Henry V. Escrita em 1599. Nota: Tradução livre de um trecho da peça de William Shakespeare.

Migalhas | Juiz manda reduzir petição de 19 laudas, mas TJ/SP ordena análise

 


Saiba mais!

Boa leitura!

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Resumo | Artigo Jurídico

Para resumir adequadamente um texto jurídico extenso com clareza e objetividade, destaque os elementos mais importantes do texto. Aqui estão alguns passos que você pode seguir ao resumir um artigo jurídico:

  • Identifique o Tema Principal: Comece compreendendo o objeto principal do artigo. Qual é a questão jurídica central discutida?
    1. Estrutura Geral: Divida o resumo em seções claramente definidas:
      • Introdução: Contextualize o tema e apresente a tese principal do autor.
      • Desenvolvimento: Exponha os argumentos principais de forma lógica e sequencial. Identifique os pontos de vista, teorias ou jurisprudências abordados.
      • Conclusão: Resuma as conclusões do autor, destacando suas implicações ou proposições finais.
    1. Destaque Conceitos-Chave: Identifique e explique conceitos e termos jurídicos relevantes mencionados no texto.

  • Exemplos e Casos: Se o texto inclui exemplos práticos, casos jurídicos ou referências a decisões judiciais, resuma-os destacando como eles exemplificam os argumentos do autor.
  • Críticas e Discussões: Se o texto oferece críticas ou discute outras obras, resuma essas discussões e como elas complementam ou contradizem a tese principal.
    1. Mantenha Objetividade: Use uma linguagem clara e direta. Evite jargões desnecessários para que leitores sem formação jurídica compreendam.

    segunda-feira, 26 de abril de 2021

    Linguagem inovadora: AGU utilizará vídeos e QR Codes nas petições

    Segundo o órgão, a ideia é evitar o chamado "juridiquês" para deixar o Direito mais claro e compreensível.

    sexta-feira, 23 de abril de 2021

    A PDF - Procuradoria-Geral Federal, órgão da AGU, criou projeto para introduzir uma linguagem acessível e clara nas petições. O projeto "Linguagem Jurídica Inovadora" adota o formato "visual law" na elaboração das petições, com a utilização de elementos visuais, como vídeos, infográficos, fluxogramas e QR Codes para tornar o Direito mais claro e compreensível.

    Office, Business, Colleagues, Meeting

    Segundo o órgão, a ideia é evitar o chamado "juridiquês", conforme explica a procuradora Federal Alexandra da Silva Amaral, coordenadora-nacional do Grupo de Cobrança de Grandes Devedores da PGF. O QRcode na petição, por exemplo, direciona para áudio ou vídeo, com apresentação dos principais pontos controvertidos da demanda.

     

    "O objetivo é introduzir uma linguagem acessível, clara, procurando mudar a comunicação com magistrados e desembargadores. A ideia é ter uma aproximação mais eficiente, em princípio, com os tribunais e com a própria Advocacia-Geral."

    De acordo com a procuradora, a proposta nasceu das dificuldades enfrentadas pelos procuradores federais com o isolamento social ocasionado pela pandemia da covid-19.

    "Esse projeto é importante não só pela própria introdução de uma linguagem diferenciada no nosso trabalho, no nosso cotidiano, mas especialmente porque foi todo realizado neste período de pandemia, com as dificuldades que enfrentamos com o trabalho não-presencial."

    Informação: AGU.

    Por: Redação do Migalhas

    Atualizado em: 23/4/2021 16:20

     

    quarta-feira, 7 de abril de 2021

    Migalhas - José Maria da Costa | Prefeitura ou município?

    José Maria da Costa

    quarta-feira, 7 de abril de 2021

    O leitor que se faz conhecer apenas por Miyazaki envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

    "O correto não seria prefeitura do município de... em vez de prefeitura municipal...? Nesse sentido, na Receita Federal (CNPJ) consta município de ..."

    1) Um leitor indaga, em suma, qual a forma correta: Prefeitura do Município ou Prefeitura Municipal? Pode-se acrescentar à consulta um outro aspecto da mesma questão: Prefeitura ou Município? Aliás, começa-se por esse último aspecto.

    2) Em termos técnicos, veja-se que, pelo art. 41, III, da Constituição Federal, a pessoa jurídica de direito público interno é o Município, e não a Prefeitura. Bem por isso, ajuizar uma ação em nome da Prefeitura Municipal acarreta, em última análise, uma atuação em ilegitimidade de parte, já que ela não é a pessoa jurídica cujos interesses estejam defendidos, e sim o Município. A Prefeitura Municipal, em última análise, é apenas a sede física daquele, seu local de gestão, seu centro de administração, assim como a prefeitura da universidade ou a prefeitura do campus. Insista-se: a Prefeitura Municipal não se caracteriza como ente dotado de personalidade jurídica. Por isso, aliás, o leitor alerta para o fato de que, na Receita Federal, consta o CNPJ do Município, e não da Prefeitura Municipal.

    3) Realce-se, porém, em complementação ao item anterior, que os tribunais têm posto a troca de Município (ente efetivo com personalidade jurídica e com interesses e direitos a serem defendidos em juízo) por Prefeitura Municipal (apenas sede física, local de atuação de seus órgãos) na conta de mera irregularidade sanável nas petições dos processos judiciais. E, por essa razão, não extinguem as ações assim postas pelos Municípios com a vestimenta de Prefeitura Municipal, nem aquelas que são aforadas em mesmos moldes contra eles.

    4) Quanto ao mais, importa observar que as expressões Prefeitura Municipal ou Prefeitura do Município são formas perfeitamente intercambiáveis em nosso idioma, de modo que não há óbice algum a que, quando for o caso de seu uso adequado, se empregue uma pela outra. No caso, municipal é um adjetivo e do Município uma locução adjetiva, e ambos podem ser empregados um pelo outro indistintamente. Da mesma espécie são os seguintes empregos, amor materno ou amor de mãe, atitude de criança ou atitude infantil, café da manhã ou café matinal, ondas do mar ou ondas marítimas, casa com flores ou casa florida. Apenas se ressalta que nem toda locução adjetiva tem um adjetivo correspondente, como é o caso de casa sem flores.

    Atualizado em: 7/4/2021 08:10

     

     

    quarta-feira, 17 de março de 2021

    Migalhas - José Maria da Costa | Obstar - Como é seu uso?

    A leitora Elizabeth Silva de Oliveira envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

    "Sobre o verbo obstar: 'A pretensão de revisão da matéria encontra-se obstada no art. 896 da CLT'. Está correta a construção 'obstada no'?"

    1) Uma leitora indaga, em síntese, sobre o verbo obstar no seguinte trecho: "A pretensão de revisão da matéria encontra-se obstada no art. 896 da CLT". E especifica sua dúvida, ao questionar se está correta a construção "obstada no".

    2) Inicia-se esta resposta com a fixação de algumas premissas, e a primeira delas diz respeito ao fato de que alguns autores defendem que o verbo obstar é transitivo direto, enquanto outros o veem como transitivo indireto, e, nessa divergência entre os gramáticos, fica-se com a lição doutrinária de Artur de Almeida Torres1, o qual, fundado em exemplos de autores abalizados, assevera de modo taxativo que "obstar pertence à classe dos verbos que, mantendo inalterável o sentido, pedem indiferentemente objeto direto ou indireto": Exs.: a) "... do velho doutor obstara o duelo" (José de Alencar); b) "Nada obstaria [...] a que indicássemos..." (Rui Barbosa).

    3) Em segunda premissa, deve-se dizer que, em termos de estrutura da frase, voz ativa e voz passiva são dois modos diversos de estampar a mesma realidade, com alteração de funções sintáticas dos termos, de modo que, na primeira de tais estruturas, o sujeito pratica a ação indicada pelo verbo, enquanto, na segunda, o sujeito recebe a ação indicada pelo verbo. E tal realidade se pode constatar com facilidade nos seguintes exemplos: (i) "O menino prendeu o passarinho" (o sujeito "o menino" pratica a ação indicada pelo verbo prender); (ii) "O passarinho foi preso pelo menino" (o sujeito "o passarinho" recebe a ação indicada pelo verbo prender).

    4) Em terceira premissa, ainda observando as estruturas das duas frases apontadas, podem-se extrair as seguintes ilações: (i) o objeto direto da voz ativa torna-se o sujeito da voz passiva; (ii) o sujeito da voz passiva torna-se o agente da passiva; (iii) o agente da passiva normalmente vem precedido pela preposição por (no caso, em sua variante pelo).

    5) Em complementação ao item anterior, pode-se afirmar com tranquilidade que, como consequência da própria estrutura já referida, os verbos transitivos diretos podem ser empregados na voz passiva.

    6) Com essas ponderações, tornando ao exemplo da consulta, agora com os elementos estruturais de mudança de voz já referidos, pode-se dizer que está correto o seguinte exemplo na voz passiva: "A pretensão de revisão da matéria encontra-se obstada pelo art. 896 da CLT". Corresponderia ele, em realidade, a este exemplo na voz ativa: "O art. 896 da CLT obsta a pretensão de revisão da matéria".

    7) Sem grandes esforços, também se pode pensar na variação correta do exemplo para a seguinte forma: "A pretensão de revisão da matéria encontra-se obstada pela CLT no art. 896".

    8) Em continuação, também não se pode recriminar em extensão alguma a correção da seguinte variante do exemplo: "A pretensão de revisão da matéria encontra-se obstada no art. 896 da CLT". Trata-se de mera adaptação do exemplo anterior, apenas com a supressão do agente da passiva.

    9) Com toda essa análise, pode-se dizer, em resumo, que estão corretos todos os seguintes modos de expressão construídos com o verbo obstar: (i) "O art. 896 da CLT obsta a pretensão de revisão da matéria"; (ii) "A pretensão de revisão da matéria encontra-se obstada pelo art. 896 da CLT"; (iii) "A pretensão de revisão da matéria encontra-se obstada pela CLT no art. 896"; (iv) "A pretensão de revisão da matéria encontra-se obstada no art. 896 da CLT".

    __________

    1 TORRES, Artur de Almeida. Regência Verbal. 7. ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Fundo de Cultura S/A, 1967, p. 204-205.

    Atualizado em: 17/3/2021 08:00

     

    quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

    Pôr do sol é pores do sol e nascer do sol É...

    O leitor Eduardo Roque envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

    "Por gentileza, se o plural de pôr do sol é pores do sol, como fica o plural de 'nascer do sol'? Grato"

    1) Um leitor, partindo do princípio de que o plural de pôr do sol é pores do sol, indaga como fica o plural de "nascer do sol".

    2) Para um entendimento mais didático da questão, parte-se de observações sobre pôr do sol, para, em continuação, tecer considerações específicas concernentes à dúvida trazida pelo leitor.

    3) Com as alterações introduzidas em nosso sistema pelo Acordo Ortográfico de 2008, é oportuno observar como fica, quer quanto ao hífen, quer quanto ao acento gráfico, a escrita da expressão: pôr-de-sol, por-de-sol, pôr de sol ou por de sol?

    4) Como é de fácil percepção, deve-se partir a questão em dois aspectos: a) o primeiro elemento da expressão continua com o acento circunflexo ou o perdeu?; b) há hífen para separar os elementos da expressão ou não?

    5) Num primeiro aspecto, anota-se que, antes das recentes mudanças em nossa ortografia, a regra era acentuar a forma verbal pôr, para distingui-la da preposição por.

    6) A explicação para essa ocorrência era que o verbo configurava uma forma tônica, enquanto a preposição, uma forma átona, de modo que se empregava, assim, na primeira, um acento diferencial de tonicidade.

    7) Pois bem. Esse acento foi expressamente mantido pelo Acordo Ortográfico de 2008, como se pode conferir nos seguintes exemplos: a) "O trabalho foi feito por ele" (preposição); b) "É preciso pôr os pingos nos is" (verbo).

    8) Num segundo aspecto, antes das recentes mudanças, havia, sim, o hífen para separar os elementos de tal palavra, de modo que a escrita correta era pôr-de-sol (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2004, p. 638).

    9) O Acordo Ortográfico de 2008, mantendo raras exceções já consagradas pelo uso, eliminou o hífen das locuções substantivas.

    10) No rol desses vocábulos em que se eliminou o hífen, acha-se a locução pôr de sol, como se pode comprovar no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2009, p. 668).

    11) Vejam-se, desse modo, os seguintes exemplos, com a indicação de sua correção ou erronia entre parênteses: a)"Dificilmente haverá um pôr-de-sol como aquele" (errado); b) "Dificilmente haverá um pôr de sol como aquele" (correto); c) "Dificilmente haverá um por-de-sol como aquele" (errado); d) "Dificilmente haverá um por de sol como aquele" (errado).

    12) Apenas para ilustração complementar, frisa-se que o plural de pôr de sol é pores de sol.

    13) Quanto à expressão nascer do sol, no que toca à correta grafia, o certo é que, já antes do Acordo Ortográfico de 2008, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa não a registrava com hífen, de modo que continua grafada exatamente do mesmo modo: nascer do sol.

    14) E, no que respeita ao plural da mencionada expressão, segue ela o mesmo raciocínio do outro circunlóquio já analisado: nasceres do sol.

    Fonte: Migalhas.

     

    quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

    Mister e Outrem - Como pronunciar?

    José Maria da Costa

    quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

     

    O leitor Fernando Burkert Pelachini Valle envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

    "Peço encarecidamente ao dr. José Maria da Costa que me esclareça qual a pronúncia correta dessas duas palavras: outrem e mister. Já ouvi diversas pessoas as pronunciarem de forma diferente quanto à sílaba tônica. A meu ver, a pronúncia deveria ser "ôutrem" e "míster", mas é comum ouvir pronunciarem como "outrém" e "mistér". Qual a forma correta?"

    1) Um leitor pede se esclareça qual a pronúncia, em nosso idioma, das palavras outrem e mister.

    2) Inicia-se esta resposta com a observação de que, entre nós, a Academia Brasileira de Letras é o órgão incumbido, por delegação legal, de definir a existência, a grafia oficial, a pronúncia, o gênero e as peculiaridades dos vocábulos de nosso idioma. E ela, para atender a essa autorização legal, o faz oficialmente pela edição, de tempos em tempos, do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). Mais modernamente, ela também tem disponibilizado em seu site, pela internet, o rol dessas palavras e expressões.

    3) Com essa anotação como premissa, segue-se dizendo, num primeiro plano, que uma consulta à referida obra mostra que nela se registra exclusivamente outrem, não havendo o registro de outrém.1

    4) E isso significa que, pela própria grafia oficialmente aceita do mencionado substantivo, sua pronúncia apenas pode ser ôutrem, jamais outrém (os acentos gráficos foram postos para indicar a localização da sílaba tônica, mas é certo que eles não são utilizados no vocábulo em discussão).

    5) Quanto ao segundo vocábulo da pergunta do leitor, a mesma obra apresenta tão somente a grafia mister2, e, como o próprio VOLP faz questão de observar para não haver dúvidas, sua pronúncia é indicada entre parênteses do seguinte modo: (é). Vale dizer, pronuncia-se como mistér, de modo que o vocábulo rima com um conhecido utensílio de mesa, a colher, ou mesmo com Ester.3

    6) Tal palavra tanto pode ser substantivo (significando necessidade, ocupação ou trabalho), como adjetivo (com a acepção de necessário, preciso ou urgente). Exs.: (i) "Ocupava-se ele com os misteres da advocacia" (substantivo); (ii) "Era mister coibir a deslealdade processual" (adjetivo).

    7) Acrescenta-se, por fim, que o vocábulo inglês mister (significando senhor), cuja pronúncia, sim, é míster, não pertence ao nosso idioma, motivo pelo qual, se houver necessidade de seu emprego em texto vernáculo, então, seguindo a grafia da língua original, deve ser escrito sem acento e, entre nós, por não pertencer ao nosso léxico, deve ser grafado em itálico, em negrito, entre aspas ou sublinhado, para indicar exatamente essa circunstância de não pertencer a nossa língua.

    __________

    1 Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Imprinta, 2004, p. 606.

    2 Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Imprinta, 2004, p. 555.

    3 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 19. ed., segunda reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974, p. 58.

    Fonte: Migalhas.