Introdução: O Paradoxo da Comunicação no Século XXI
Vivemos uma contradição histórica. Enquanto a tecnologia encurta distâncias e acelera a troca de informações, o Judiciário brasileiro enfrenta uma crise de comunicação interna. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em sua Resolução n. 395/2021, reconhece, como consequência, a necessidade de modernização da linguagem forense ao estabelecer diretrizes para simplificação de atos processuais.
O Judiciário recebeu 35,3 milhões de novos casos em 2023. Parte significativa dessa morosidade decorre não apenas da organização judiciária e do volume processual, mas da ineficiência comunicativa das peças judiciais.
Já dizia a máxima: "A pior das ignorâncias é não saber escrever". No contexto forense contemporâneo, essa afirmação ganha contornos ainda mais dramáticos. Não se trata apenas de saber escrever, mas de compreender que a redação jurídica é instrumento de acesso à justiça, materialização do devido processo legal (art. 5º, LIV, da Constituição Federal) e expressão da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CF/88).
A Filosofia da Simplicidade: Menos é Mais no Direito Processual
A hermenêutica jurídica contemporânea demonstra que o texto não existe isoladamente, mas na relação dialógica com seu intérprete. Quando elaboramos petições prolixas, repletas de citações desnecessárias e argumentos repetitivos, não estamos apenas desperdiçando tempo do magistrado – estamos violando princípios constitucionais processuais.
O princípio da eficiência processual, implícito no art. 37 da Constituição Federal e explicitado no art. 8º do Código de Processo Civil de 2015, determina que todos os sujeitos processuais devem cooperar para obtenção de decisão de mérito justa e efetiva em prazo razoável. Uma petição de 50 páginas que poderia ser escrita em 10 não é demonstração de erudição – é obstáculo à justiça.
Os Pilares da Redação Jurídica Eficaz
Clareza: O texto jurídico deve ser compreensível para todos os destinatários. Quando redigimos uma contestação, não estamos escrevendo apenas para o juiz, mas para a parte adversa, para eventual tribunal recursal e, em última análise, para o jurisdicionado. A clareza não é simplismo; é respeito à dignidade humana processual.
Objetividade: Cada parágrafo deve ter função específica. Observe este exemplo inadequado:
"Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da MM. Vara Cível da Comarca de São Paulo, Capital do Estado de São Paulo, Brasil, perante Vossa Excelência, com o mais profundo respeito e acatamento que é devido à investidura de que é portador..."
Compare com a versão adequada:
"Excelência, JOÃO DA SILVA, já qualificado nos autos, vem respeitosamente apresentar CONTESTAÇÃO pelos seguintes fundamentos..."
A primeira versão consome três linhas sem transmitir informação relevante. A segunda identifica a parte e o objetivo da petição imediatamente.
Concisão: A concisão é um atributo essencial para uma petição, dirigida ao Judiciário. Não se deve ser prolixo, escrevendo dezenas de páginas. Um texto enxuto, bem redigido, com clareza e objetividade, atende sua finalidade maior, qual seja dialogar com o intérprete, no caso, o magistrado, de forma mais eficaz e efetiva.
Lógica Jurídica Aplicada
A construção argumentativa em petições deve seguir a estrutura silogística clássica, adaptada ao raciocínio jurídico:
- Premissa maior (norma jurídica): Identificação clara do fundamento legal
- Premissa menor (fato jurídico): Demonstração dos fatos que se amoldam à norma
- Conclusão (pedido): Consequência lógica das premissas anteriores
Exemplo prático em ação de cobrança:
Premissa maior: "O art. 389 do Código Civil estabelece que não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos."
Premissa menor: "O réu, conforme documentos anexos (docs. 03-04), deixou de pagar as parcelas contratuais vencidas em março, abril e maio de 2025, totalizando R$ 15.000,00."
Conclusão: "Requer-se a condenação do réu ao pagamento do principal de R$ 15.000,00, acrescido de juros moratórios de 1% ao mês e correção monetária pelo IPCA desde os respectivos vencimentos."
Observe a economia processual: em três parágrafos, apresentamos norma, fato e pedido de forma encadeada e lógica. Não há necessidade de transcrever doutrina sobre mora, nem de citar dez acórdãos que repetem o óbvio.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Comunicação Forense
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil através do Decreto n. 678/1992, estabelece em seu art. 8º o direito à prestação jurisdicional em prazo razoável.
Nesse contexto, a redação jurídica deficiente não é mera questão estilística – é problema de direitos fundamentais. Quando apresentamos peça processual prolixa, confusa ou redundante, contribuímos para a lentidão sistêmica que a própria comunidade internacional condena.
Casos Concretos: A Diferença entre Verborragia e Eficiência
Caso 1 - Embargos à Execução ineficientes:
Um advogado apresentou embargos com 45 páginas, incluindo histórico completo da execução fiscal, transcrição integral de artigos do CTN, citação de 30 acórdãos e explanação doutrinária sobre prescrição tributária. O argumento central (prescrição intercorrente) aparecia apenas na página 38.
Resultado: O juiz indeferiu liminarmente por não identificar o fundamento específico nos primeiros parágrafos, aplicando o art. 321 do CPC (petição inepta por falta de clareza). O tribunal manteve a sentença.
Caso 2 - Embargos eficientes:
Outro advogado, no mesmo tipo de demanda, apresentou peça de 8 páginas com estrutura clara:
- Endereçamento correto, Qualificação e síntese do pedido (1 página)
- Demonstração cronológica da prescrição intercorrente com base no art. 40, §4º da Lei 6.830/80 (3 páginas)
- Jurisprudência paradigma do STJ (1 página)
- Pedidos e requerimentos (1 página)
- Documentos comprobatórios anexos (2 páginas)
Resultado: Liminar deferida em 48 horas, mérito julgado procedente em 30 dias.
A diferença não está na qualificação técnica dos advogados, mas na compreensão de que o destinatário (magistrado) precisa identificar rapidamente a tese jurídica defendida.
A Tríade da Persuasão Forense
Há três pilares da persuasão jurídica que absolutamente se destacam:
Credibilidade: Construída através de linguagem técnica adequada, referências precisas e formatação profissional. Uma petição com erros gramaticais, citações incorretas ou formatação desleixada compromete a credibilidade do argumento antes mesmo que o mérito seja analisado.
Conexão emocional: Especialmente relevante em áreas como Direito de Família, do Consumidor e Trabalhista. Não significa apelo piegas, mas contextualização humanizada dos fatos. Compare:
Versão inadequada: "A autora sofre muito com a situação e está muito triste."
Versão adequada: "A separação dos genitores, ocorrida quando a criança tinha apenas 3 anos, seguida pela ausência paterna nos últimos 5 anos, configura abandono afetivo com repercussões psicológicas documentadas no laudo de fls. 45-52."
Lógica argumentativa: A estrutura racional já abordada no silogismo jurídico. Argumentos devem encadear-se naturalmente, do geral para o específico, do abstrato para o concreto.
Direito Constitucional Processual: Fundamentos da Síntese Jurídica
O princípio constitucional da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, CF/88), incluído pela Emenda Constitucional n. 45/2004, não é mera recomendação programática. Nesse sentido, todos os sujeitos processuais, inclusive advogados, têm dever de colaboração para efetividade processual.
Igualmente, a doutrina processual contemporânea estabelece ser dever das partes e dos advogados enquadrar o exercício do direito de defesa à lógica do processo, interpretando esse preceito como subsídio para rejeição de peças manifestamente protelatórias ou desnecessariamente extensas.
Técnicas Práticas de Redução Textual sem Perda de Conteúdo
Técnica 1 - Eliminação de redundâncias jurídicas:
❌ "Conforme preceitua, estabelece e determina o art. 927 do Código Civil..."
✅ "O art. 927 do Código Civil estabelece..."
Técnica 2 - Síntese de jurisprudência:
❌ Transcrever 5 páginas de acórdãos com conteúdo similar
✅ "O STJ consolidou entendimento no sentido de que... (REsp...)"
Técnica 3 - Objetividade na fundamentação:
❌ "Primeiramente, cumpre ressaltar, antes de tudo, que é importante destacar que..."
✅ Iniciar diretamente o argumento substantivo
Técnica 4 - Uso estratégico de anexos:
Documentos extensos (contratos, laudos, pareceres) devem ser anexados, não transcritos. No corpo da petição, apresenta-se síntese com remissão: "Conforme cláusula 5.2 do contrato anexo (doc. 03, fl. 15)..."
SEO Jurídico: Facilitando a Pesquisa Processual
Embora subestime essa dimensão, a estrutura da petição deve facilitar sua localização em sistemas de busca processuais. O uso de palavras-chave específicas nos primeiros parágrafos auxilia não apenas o magistrado de primeiro grau, mas eventuais pesquisadores, estagiários e julgadores recursais.
A Dimensão Ética: O Dever de Lealdade Processual
O art. 80, II, do CPC/2015 proíbe expressamente a conduta de "alterar a verdade dos fatos". Uma petição extensa, que esconde o argumento fraco em meio a páginas de considerações irrelevantes, pode configurar litigância de má-fé.
Exemplo: é possível a condenação por litigância de má-fé em caso onde a parte apresente contestação de 180 páginas com argumentos notoriamente protelatórios.
Além disso, nos termos do art. 2º, inciso VIII do Código de Ética e Disciplina da OAB, é dever do advogado "atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé". A redação prolixa que visa apenas protelar ou confundir viola simultaneamente os deveres de lealdade (processual) e boa-fé (objetiva).
Conclusão: A Redação Jurídica como Instrumento de Transformação Social
Retomando os argumentos apresentados, evidencia-se que a redação jurídica eficiente não é luxo acadêmico ou preciosismo estilístico. Trata-se de imperativo constitucional (duração razoável do processo), exigência legal (CPC, art. 77, V), comando ético (OAB) e compromisso com os direitos humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
A síntese dos argumentos principais:
- A clareza textual materializa o acesso à justiça e o devido processo legal
- A objetividade respeita o tempo institucional e a dignidade dos operadores jurídicos
- A concisão acelera a prestação jurisdicional e reduz custos processuais
- A estrutura lógica facilita a compreensão e fortalece a persuasão
- O cumprimento dos limites éticos previne litigância de má-fé
Convite ao debate acadêmico: Propomos a criação de grupos de estudo multidisciplinares reunindo magistrados, advogados, professores e linguistas para desenvolvimento de manual prático de redação forense, com exemplos reais (anonimizados) de boas e más práticas. As Escolas da Magistratura, seccionais da OAB e faculdades de Direito podem protagonizar esse movimento.
Proposta de intervenção social inovadora: Sugerimos ao CNJ a instituição do "Selo Petição Clara", certificação digital atribuída automaticamente a petições que respeitarem parâmetros objetivos (limite de páginas por tipo de ação, uso de linguagem simples, estrutura lógica verificável por IA). Processos com peças certificadas poderiam ter prioridade na pauta de julgamento, incentivando boas práticas de forma concreta.
O desafio está posto: transformar a redação jurídica de obstáculo burocrático em ponte de acesso à justiça. Como diriam... não basta saber escrever – é preciso saber escrever bem, e escrever bem no Direito significa escrever para ser compreendido, não para impressionar. A revolução silenciosa da clareza jurídica começa em cada petição que redigimos.
"Os homens de poucas palavras são os melhores." William Shakespeare
Henry V. Escrita em 1599. Nota: Tradução livre de um trecho da peça de William Shakespeare.
